A maior e mais completa coleção do mundo de quadros do pintor austríaco Franz Josef Widmar, que pode ser admirada em uma exposição permanente, constitui o verdadeiro coração da Fundação Brasilea; porém, até o momento falta um levantamento completo das mais de 500 obras. A presente publicação mostra pela primeira vez uma maior seleção de pinturas confeccionadas por Widmar da Coleção Walter Wüthrich. Ela tem como intuito oferecer um apanhado geral representativo do diversificado trabalho artístico de Franz Josef Widmar; ao mesmo tempo, o livro possibilita obter uma pequena visão sobre a coleção da Fundação e, desta maneira, lançar mais uma pedra angular para uma análise mais profunda e contínua de uma obra que até então não recebeu a atenção merecida.
Antes de se efetuar qualquer análise da obra artística de Franz Josef Widmar, faz-se necessário lançar a seguinte questão: como se deve abordar uma obra que, à primeira vista, parece carecer de uma nítida marca pessoal e cujas características principais aparentemente se encontram na permanente mudança entre diferentes estilos e gêneros? Um passeio pela coleção das pinturas assemelha-se um pouco a um breve resumo da história da arte dos últimos 150 anos. Parece não existir praticamente nenhum estilo com o qual Widmar não tenha se ocupado ao longo de seu trabalho e não há um gênero que não o tenha interessado, nenhuma técnica que ele não tenha experimentado. Porém, quando se trata de reconhecer em uma obra artística a motivação de seu autor, ou seja, os fundamentos de suas ações, procura-se primeiramente as constantes para se poder proceder a tal avaliação; procura-se pontos fixos que permitam traçar uma matriz com a qual seja possível captar tanto o desenvolvimento artístico como também a ampla gama de habilidades manuais e espirituais do autor. O discurso sobre a “alma” de uma obra artística orienta-se justamente pelos elementos caracterizadores intrinsecamente relacionados à própria essência do artista. Tal empenho confronta-se sobretudo com a falta de constância em seu trabalho com relação a características estilísticas bem como à discrepância parcialmente marcante da qualidade das pinturas.
Franz Josef Widmar aparentemente não mostrou ter interesse nas efemeridades de um discurso teórico; ele parece ter procurado muito mais uma verdade subjacente a este. Uma verdade que certamente nunca pretendeu ser universal e absoluta, como se ela mesma aproximasse suas mais diferentes condições às relações mais estreitas e imagináveis do artista. A postura artística de Widmar, que sempre corresponde a sua concepção muito própria e particular da obra do pintor, está intimamente relacionada com suas condições gerais de vida.
Devido à constante ajuda financeira de alguns de seus amigos, Franz Josef Widmar parece ter encontrado uma base de vida mínima, mas que aparentemente teria sido suficiente para ele. Mesmo assim, seria impróprio afirmar que Widmar tivesse sido um pintor que trabalhasse apenas por encomenda. Widmar evidentemente nunca se preocupou muito com sua situação econômica em parte demasiado precária. Poder pintar e conseguir manter um determinado espaço de liberdade nesta atividade – obviamente ele se deu por satisfeito durante toda sua vida com estas modestas exigências que, contudo, nunca aceitou como algo natural. Assim, nas cercanias do Rio de Janeiro, ele teve a oportunidade de realizar suas visões artísticas, distante dos centros urbanos nos quais era proferido o discurso da história da arte com grande afã e onde a carreira artística se tornava cada vez mais uma carreira acadêmica.
Em virtude de não possuirmos praticamente quaisquer informações concretas sobre sua formação (artística) e devido ao fato de podermos datar a primeira obra da coleção em meados dos anos 50, não podemos afirmar se Widmar na verdade alguma vez se ateve a um único estilo durante um período mais longo de tempo. Mostra-se relativamente fácil reconhecer as diversas influências dos diferentes estilos e épocas em suas várias obras. O que se revela muito mais complexo, senão impossível, é o trabalho de esboçar uma hierarquia destas mesmas influências. Naturalmente, em alguns pontos, mostra-se inconfundível a influência de Oskar Kokoschka bem como de demais pintores da Secessão de Viena e do grupo participante da posterior Kunstschau (exposição de arte de Viena).
Outras pinturas relembram fortemente Paul Klee ou parecem estar bem próximas às idéias que os impressionistas mais tarde projetariam em seus respectivos quadros, para citar apenas alguns exemplos. O trabalho de Widmar encontra-se repleto de reminiscências, citações e referências. Uma mera enumeração das diferentes influências resultaria necessariamente em um catálogo de estilos artísticos que permite ampliação quase ilimitada bem como em uma relação metódica dos protagonistas mais conhecidos da pintura, pelo menos dos últimos 150 anos. Uma análise desta natureza seria efetuada simplesmente pela sua própria razão de ser, sem poder contribuir substancialmente para a compreensão do trabalho de Widmar. A quantidade e a importância das referências tornam obsoleta a abordagem de desejar entender o trabalho artístico com o auxílio de uma coletânea de diferentes fontes catalogadas hierarquicamente. No caso de obras individuais ou com referência a grupos isolados de pinturas, tal metodologia poderia perfeitamente ter seu sentido (devendo até mesmo ser aplicada em outros casos). Entretanto, considerando-se a totalidade das obras, uma abordagem desta natureza não faria jus a toda sua diversidade.
Pelo contrário: deve-se aceitar o fato de Widmar ter feito uso da história da arte como um tipo de “biblioteca de pinturas”. Cada pintura – independentemente de seu valor artístico – representa em primeira instância uma postura individual de expectativa de seu autor. Conseqüentemente, uma pintura equivale ao resultado de uma tarefa que uma pessoa atribuiu a si mesma. Evidentemente não pode ter sido o objetivo primordial de Widmar desenvolver um estilo próprio até o ponto deste tornar-se seu estilo individual, inconfundível em sua expressão visível. Ele fez uso de sua própria “biblioteca de pinturas” individual da mesma forma como outras pessoas utilizam uma teoria específica ou um certo livro para desenvolver um determinado trabalho científico. Em princípio, para concretizar uma noção determinável e pré-concebida, o importante para Franz Widmar era a questão referente ao estilo que o pintor utiliza. Para ele, as possibilidades da expressão artística em um quadro residia, portanto, na vastidão das potencialidades estilísticas; somente em uma segunda etapa tornam-se importantes os aspectos do talento artístico para a pintura, do olhar e da convicção interna para poder encontrar sua própria verdade no quadro. Estes diferentes níveis apenas podem ser entendidos no contexto da inter-relação destes mesmos estilos, e, somente através do grande talento artístico de Widmar, seus quadros adquirem sua expressão genuína e uma qualidade que não se pode resumir em uma mera citação. Naturalmente tal concepção envolve um certo caráter experimental, pois um trabalho artístico que se fundamenta na mesma também sempre é condicionado pela repetida conquista de novos territórios. Desta mesma forma, a discrepância qualitativa que se torna patente nos trabalhos de Widmar permite igualmente melhor interpretação: a manifestação, às vezes ingênua, de algumas pinturas é oriunda do fato de Widmar nunca ter se dado por satisfeito e jamais ter evitado o contato com novos estilos e gêneros na sua procura por outras expressões; com a óbvia conseqüência de que nem todos os quadros apresentam a mesma segurança na sua respectiva concretização.
A abordagem artística de Widmar mostra pouca correspondência com o horizonte convencional de experiências, segundo o qual a obra de um artista não por último representa a ilustração de uma procura por estratégias bastante pessoais de expressão. Mas com isto esquecemos muito facilmente que, após ter emigrado para o Brasil, Franz Josef Widmar desenvolveu suas atividades em um ambiente que, naquela época, não tinha qualquer semelhança com o mundo das artes da Europa e dos Estados Unidos. Widmar interiorizou as impressões e experiências do intervalo de tempo em que permaneceu na Europa e sua obra evidencia claramente uma constante retomada deste passado. Contudo, parece que o caráter experimental de suas atividades artísticas apenas pode ser elucidado a partir do fato de Widmar realmente não ter estado diretamente envolvido no Brasil no discurso “ocidental”. Widmar aparentemente encontrou no Rio a liberdade artística que constitui a base de suas obras cuja multiplicidade será apresentada nas próximas páginas.
A obra de vida deste pintor artístico nascido na Áustria e falecido no Brasil em 1995 encontrou seu local de permanência no amplo centro cultural da Fundação Brasilea, localizado no porto fluvial do Reno na Basiléia. As 527 obras, em sua maioria pintadas sobre pavatex, estão amplamente dispostas no 1o pavimento do impressionante edifício. Ao admirar estas pinturas agrupadas por temas que reluzem em centenas de facetas, o observador tem a sensação das mesmas terem sido interpretadas por diversos pintores distintos. A diversidade estilística e temática é simplesmente impressionante!
A procura pelo sentido da vida
O desenvolvimento da globalização do mundo não exerceu influência sobre o carisma intelectual e a formalidade da pintura de Franz Josef Widmar. Sua delicada sensibilidade e leveza ilustram a constante procura do artista pela verdade e pelo sentido da vida. No isolamento de seu ateliê no Brasil, pleiteava por uma natureza intacta, a qual ele despertava para uma nova vida através de suas pinceladas firmes e apurada composição de cores. Seu trabalho manifesta uma viagem fascinante para o mundo das recordações – um anseio por independência e liberdade social.
Friedrich von Schlegel (1772 a 1829) afirma com propriedade que o homem clássico carrega dentro de si mesmo o âmago da vida. Talvez o equilíbrio interno e o romantismo dos quadros de Franz Josef Widmar também correspondam a este axioma. São suscitadas memórias de Runge, Corot ou Töpfer. Em diversas obras, o pintor discorre sobre a transitoriedade do ser e o sofrimento de Cristo na cruz. Com aguçada capacidade de observação, conduzindo sutilmente seu pincel e aplicando técnica perfeita com sua espátula, ele compõe uma série de retratos marcantes, incluindo diversos auto-retratos. Neste processo, ele deixa-se inspirar pelo estilo de pintura de um Gaugin, Cézanne, van Gogh ou de um Hodler. Além disso, ele é capaz de traduzir a aleatoriedade na composição da pintura japonesa com seu sutil jogo de cores nas pinturas de flores em grande formato apresentando uma expressão encantadora que por sua vez relembram gravuras coloridas em madeira de Harunobu ou de Hiroshige. O fato de Franz Josef Widmar também ter se deixado inspirar pelo construtivismo moderno pode ser comprovado pelos seus virtuosos jogos com figuras ou suas superfícies integradas no espaço, como pode-se verificar em 1910 na obra de William Wauer e, posteriormente, de Klee. Um expressivo retrato de uma mulher relembra os mosaicos coloridos de Ravenna e outras composições recordam ícones bizantinos, que reconduzem à eterna representação do ser humano ou reportam a paisagens incólumes.
Um julgamento decisivo sobre o valor artístico desta obra tão diversificada somente pode ser feito no futuro. A avaliação objetiva da constelação atual é alicerçada pela dinâmica e pela segurança bem como pelas habilidades manuais do pintor. Meu parecer pessoal sobre este trabalho tão multifacetado: Franz Josef Widmar compôs sua obra a partir de uma vocação interior!
José Warmund-Cordelier
de Franz Josef Widmar a pintura de retratos ocupa uma posição particular. Em termos de quantidade, ao lado das representações de paisagens, nenhum outro gênero é contemplado de forma semelhante. Não é possível responder a questão se foram as expectativas e exigências de seus clientes ou uma afinidade especial de Widmar com as representações de pessoas a darem o impulso decisivo para que o pintor se ocupasse profundamente com o indivíduo humano. Mas o que pode ser afirmado é o fato de Widmar ter considerado a representação de pessoas como um elemento essencial para seu trabalho.
O recorte da obra do pintor incluído nesta publicação apresentando retratos de pessoas, demasiado modesto no que se refere à quantidade, deixa absolutamente evidente a impressionante diversidade dos estilos de pintura utilizados. A heterogeneidade estilística obviamente não se limita ao gênero dos retratos; porém, devido à elevada quantidade destas obras, revela-se nelas extremamente nítida.
Os retratos de Widmar fazem lembrar a procura pela representação artística de uma pessoa que não tem somente a habilidade de captar a semelhança com a aparência, mas também todas as características e aspectos que identificam a pessoa retratada como um indivíduo. Lançando mão das mais diferentes abordagens de composição, ele procura por soluções satisfatórias que possam expressar por completo a essência da pessoa retratada. As variações estilísticas envolvem desde retratos com virtuosidade naturalista até representações quase abstratas ou expressivas que deixam a pessoa retratada transparecer na composição apenas de forma fragmentária. O fato de a ampla interpretação estilística deste tema não poder ser simplesmente interpretada como conseqüência lógica de uma ocupação do artista com a pintura de retratos torna-se evidente através dos demais trabalhos artísticos desenvolvidos por Widmar. Não obstante, justamente suas representações de pessoas manifestam uma luta criadora pela reprodução das aparências externas da pessoa retratada, a apreensão da respectiva personalidade e a seleção de um estilo adequado de pintura. Desta forma, a relevância da manifestação estilística do retratado é caracteristicamente salientada neste gênero.
Além disso, os três retratos de Walter Wüthrich (vide ilustrações na pág. 3 no 408, pág. 24 no 410 e pág. 25 no 357) comprovam a disponibilidade do pintor de não limitar a observação minuciosa da essência de uma pessoa, diversas vezes por ele retratada, a uma única forma de reprodução artística. Widmar nunca parece ter determinado a priori o processo de seleção do estilo de pintura como parâmetro referencial na procura pela expressão de uma pessoa para, através dele, poder observar e analisar a essência de seus modelos por meio de diversas formas de abordagem da arte. Este fator torna-se muito mais interessante quando se tem em mente que, pela própria natureza do gênero, o artista tinha que assumir a responsabilidade de suas pinturas de retratos não somente perante si mesmo, mas perante seus respectivos modelos. Mas mesmo nestes casos, Widmar parece ter sobreposto seus propósitos artísticos às exigências e expectativas das pessoas retratadas. Assim, a determinação da pintura torna-se um processo que se limita completamente ao pintor em relação às suas concepções; conseqüentemente, a crítica de que as pinturas de Widmar tenham sido pura e simplesmente trabalhos de encomenda perde seu fundamento.
Como mencionado anteriormente, ao lado dos retratos, as pinturas de paisagens de Widmar ocupam uma posição especial já no que se refere à sua quantidade. O desejo ardente de Widmar de pintar era quase compulsivo. Com uma motocicleta ia até o bairro de Santa Tereza, explorava passo a passo as paisagens de Petrópolis e de Nova Friburgo e visitava diversas cidades menores do estado do Rio de Janeiro. Nestes passeios, ele fazia alguns esboços que mais tarde serviriam de modelo para suas pinturas a óleo, às quais sempre se dedicava em seu ateliê. Durante toda sua vida, Widmar constantemente sentiu-se muito atraído pela paisagem. Nas localizações e lugares mais distantes ao redor do Rio ele encontrou o espaço para sua liberdade de criação que caracteriza tão fortemente suas obras. Em suas criações, ele sempre colocou suas emoções e impressões momentâneas acima de um possível “dogma do estilo próprio”. De forma muito direta, suas paisagens exprimem as mais diferentes e variadas expressões das emoções de Widmar bem como sua maneira muito particular de ver as coisas. Uma maneira de ver as coisas que evidentemente nem sempre se mostra de fácil compreensão, cuja paixão e sentimentalismo podem perfeitamente exigir demais do observador.
Mas é precisamente esta interpretação imparcial e inconvencional da pintura de paisagens que caracteriza tão nitidamente este tema. O pintor emigrado da Europa encontrou abordagens muito próprias para este gênero proeminente da pintura e talvez, justamente devido a sua ascendência, possibilidades bastante pessoais de interpretação que com grande probabilidade teriam permanecido vedadas a um artista natural do Brasil, simplesmente em razão de seu background cultural. Em suas representações de paisagens, Widmar coloca à prova tanto seu aguçado olhar para a reprodução dos aspectos naturais na pintura quanto a aguçada sensibilidade de um descobridor ávido em conhecer o novo que, pesquisando, tenta orientar-se em um ambiente para ele desconhecido e excitante. Ele sente a necessidade de capturar em seus quadros tudo aquilo que o ambiente à sua volta lhe oferece pela sua própria perspectiva. O fato de ele inclusive tomar em consideração motivos atípicos em suas pinturas de paisagens não destaca apenas sua obstinação artística característica mas, em casos isolados, também transmite imagens de paisagens que foram vistas e observadas através dos olhos de um estranho.
Talvez este seja um dos motivos pelo qual algumas obras lúgubres e melancólicas também tenham sido incluídas em suas pinturas de paisagens. Neste sentido, a paisagem que mostra um caminho em direção ao pôr do sol (vide ilustração na pág. 50 no 511) manifesta de forma exemplar um aspecto sentimental do pintor que permite inclusive presumir perfeitamente um vestígio de saudade de sua terra natal. Neste caso, o quadro torna-se uma superfície de projeção de anseios e aspirações muito pessoais. Contudo, justamente em virtude da impossibilidade de se determinar tais projeções é que uma possível análise das representações de paisagens feitas por Widmar envolve um verdadeiro fascínio. Exatamente pelo fato de estas representações oferecerem ao observador ampla margem para seus próprios pensamentos é que a imagem da pessoa de Widmar se transforma em uma superfície de projeção que, afinal, cada um tem que completar por si mesmo.
Se procedermos a uma classificação do conteúdo das pinturas de Franz Josef Widmar em grupos maiores e autônomos, somos necessariamente compelidos a incluir as naturezas mortas em um único grupo; a minuciosa reprodução deste tema legitima o agrupamento destas obras como categoria independente de sua pintura. Neste contexto, merecem atenção especial a aplicação das tintas através da técnica de respingos e a utilização de tintas dissolvidas em água que caracterizam uma técnica de pintura não convencional, principalmente neste gênero. Esta técnica também pode ser observada isoladamente em algumas outras obras de Widmar; porém, pode ser considerado formalmente um elemento marcante nas suas obras de natureza morta. É provável que na semelhança entre os pontos aleatórios de tinta e a aparência natural das flores resida uma abordagem para se explicar o incessante surgimento deste tema como motivo de sua natureza morta. Faz-se necessário mencionar que o grupo destas obras não é dominado pela natureza morta clássica de flores com interior, mas distingue-se em especial por trabalhos que podem ser perfeitamente interpretados como estudos sobre a natureza. Esta variante de interpretação parece ser perfeitamente adequada uma vez que, apenas em casos excepcionais, Widmar pintou uma mesa com um vaso de flores sobre ela como elemento básico de natureza morta de flores.
Widmar também dispõe perfeitamente das habilidades de lançar mão de formas tradicionais de composição, o que é evidenciado através da natureza morta de um ateliê (vide ilustração na pág. 53 no 492). A obra manifesta uma profunda percepção para o arranjo dos objetos dispostos (objetos utilizados para pintura em um ateliê), para a incidência da luminosidade e a escolha das cores. Ao olhar através da porta entreaberta que se encontra ao fundo, a vida interior do espaço, que parece causar um efeito esférico, suscita uma expectativa adicional no observador. O ateliê transforma-se em um verdadeiro laboratório do pintor do qual o observador privilegiado pode ter uma visão íntima. Widmar praticamente atribui ao espaço um caráter quase sagrado; um gesto que não por último faz referência à (auto) estilização do pintor.
Os utensílios apresentados parecem já ter estado ali desde sempre, simbolizando parceiros de um diálogo mudo com o próprio artista. A ausência da pessoa do pintor que procura ilustrar as coisas simples da realidade, seu ser e sua aparência, deixa transparecer através da pintura ainda mais sua exigência em relação ao ateliê como local da concretização artística. Se partirmos do pressuposto de que, neste caso, Widmar provavelmente tenha pintado seu ambiente direto de trabalho – possivelmente seu ateliê no Posto Quatro de Copacabana – bem como as ferramentas de suas atividades diárias e, se além disso, interpretarmos os objetos representados como reflexo dos pensamentos e das habilidades manuais do pintor, podemos afirmar que esta obra constitui uma das pinturas mais pessoais de Franz Widmar. A obsessão de Widmar pela pintura, sua necessidade de interagir com o ambiente à sua volta através de um quadro pintado, manifesta-se de maneira lúcida na composição acumulada de objetos. Os utensílios para pintura tornam-se ferramentas bastante pessoais a serviço de sua apropriação bem individual da realidade. A intensidade da composição espelha a ligação de Widmar com estas mesmas ferramentas para as quais ele erigiu um monumento com esta natureza morta.
A ausência de uma firme continuidade no conteúdo e na composição da pintura destas representações dificulta consideravelmente sua classificação em um grupo de obras claramente definido. Por este motivo, não se pode evidenciar qualquer abordagem uniforme da pintura geométrica abstrata de Widmar. A classificação inequívoca de algumas pinturas em grupos de obras formalmente definidos não se mostra obrigatória, devendo ser inclusive relativizada em outros casos na avaliação dos trabalhos de Franz Josef Widmar.
Se em um dos quadros é possível reconhecer um casal dançando e se beijando (vide ilustração na pág. 74 no 376) e se uma outra representação mostra a vista aérea de uma metrópole (vide ilustração na pág. 75 no 288), o artista abstrai nestes mesmos quadros objetos existentes na realidade material. Widmar evidencia desta maneira uma sensibilidade aguçada para o efeito das cores e para a composição em si. Através da aplicação equilibrada de cores, o casal dançante transforma-se em uma única figura que reflete uma sensação emocional e corpórea de união e de pertencerem um ao outro. A figura não pode mais ser vista e imaginada como duas entidades distintas, uma ao lado da outra, mas atinge seu sentido propriamente dito justamente através da síntese corporal transferida ao quadro; nesta pintura, homem e mulher somente definem-se por meio de sua união.
Além disso, este grupo de obras também inclui trabalhos que acima de tudo tentam materializar algo espiritual. Este estilo de pintura, que não dispõe de objeto concreto, pode ser muito bem ilustrado especialmente através de duas representações. Ambos os quadros apresentam superfícies geométricas dispostas em espiral, causando a impressão de um efeito dinâmico de profundidade. Nestes casos, Widmar rejeita todo e qualquer resquício de representação de imagens ou figuras. Segundo sua classificação de importância, as cores primárias encontram-se no mesmo nível que as cores preto e branco em suas respectivas manifestações puras e mistas. Nestas obras, o pintor apresenta a tendência para uma “arte concreta” que faz maior ou menor referência direta a construções geométricas, não possuindo mais qualquer significado simbólico. A partir das grandiosas abordagens teóricas de Piet Mondrian e de Theo van Doesburg, a pintura geométrica abstrata pode ser definida como um estilo que subjuga o conteúdo de suas obras aos propósitos e às exigências da matemática e da composição equilibrada, representando desta forma um pólo dialético antagônico aos modos de representação miméticos.
Ambas as obras permitem detectar mais uma das múltiplas facetas da personalidade artística de Widmar: elas não deixam mais nenhum espaço para uma forma de pintura com uma linha gesticular característica e espontaneidade improvisada. Trata-se de transferir constructos mentais para superfícies de cores claramente definidas e independentes que, por sua vez, requerem um estilo de pintura minucioso e exigente do ponto de vista da técnica. As curvas dispostas em espiral não produzem apenas um movimento unidimensional para dentro do quadro, mas permitem reconhecer, com igual nitidez, um movimento contrário em direção ao observador. Desta maneira, é exercida uma influência recíproca entre movimentos em vários e diversos sentidos que não possuem qualquer direcionamento claro. Na mesma proporção em que o movimento em espiral delineia um caminho para dentro, o mesmo vetor pode ser invertido em um movimento para fora do quadro. Este ponto de distinção impossível está intrinsecamente associado ao equilíbrio da composição de cores, o que remete ao interesse artístico de Widmar em ir além da procura formal por um determinado estilo de representação de objetos.
A pintura sacra é um dos temas que constitui o menor grupo de obras do trabalho de Widmar. Se o artista viveu sua vida segundo os preceitos de uma determinada religião pode ser tampouco respondido como a pergunta a respeito das motivações que levaram Widmar a se ocupar com conteúdos religiosos em sua pintura. Apenas podemos afirmar com propriedade que, no mais tardar no Brasil, Widmar foi confrontado com um ambiente religioso cujos rituais, usos e costumes certamente significaram experiências completamente novas para o artista. Não há qualquer indicação de que os quadros religiosos tenham sido pintados por encomenda, um fato que pode conduzir ao pressuposto de que as pinturas sejam caracterizadas por um profundo conflito pessoal do artista com a religião cristã.
Neste grupo de obras encontram-se sobretudo representações de corpos torturados e violados. Os vestígios de maus-tratos corporais revelam-se com extrema evidência. Este fato verifica-se mais drasticamente em duas representações: uma de uma pessoa atada a uma árvore e a outra de uma pessoa amarrada em varas de bambu (vide ilustrações na pág. 77 no 009 e na pág. 80 no 011). Elas mostram pessoas que, em conseqüência de sua confissão religiosa, pagam com a morte. Atado a uma árvore, um dos mártires sofre a morte por flechas luminosas. Evidentemente trata-se neste caso de uma representação do martírio de São Sebastião. Sebastião era oficial da guarda imperial e, por ter confessado em público ser adepto do cristianismo, foi condenado à morte pelo imperador Diocleciano. A segunda representação retrata indubitavelmente o próprio Cristo: sem dúvida, a coroa de espinhos, o corte lateral e os ferimentos ensangüentados nas palmas das mãos referem iconograficamente à paixão de Cristo. O olhar de Cristo está voltado para cima, em direção a algo que parece se encontrar além da moldura do quadro. Através deste ímpeto, a referência à morte iminente encontra-se completamente dominada por um momento de redenção.
Uma outra representação (vide ilustração na pág. 82 no 296) mostra o Redentor fazendo um gesto de bênção sobre um mar de discípulos. A pintura revela tons pastéis, sendo que apenas o sol negro que envolve a cabeça de Cristo se destaca das tonalidades suaves de cores. Não obstante sua tonalidade sombria, isto lhe confere um certo efeito de brilho radiante. Outra representação (vide ilustração na pág. 83 no 013) mostra o semblante isolado de Cristo. Através de seus contornos imprecisos e indefinidos e por suas tonalidades de marrom que se misturam, a pintura causa a impressão de um ícone. Além disso, a expressão facial indefinível, rebuçada e indistinta que denota uma sublimidade distanciada intensifica ainda mais esta impressão. Sem exigir muitos esforços, o quadro permite a interpretação de uma alusão direta ao sudário de Verônica que, na realidade, deu origem à pintura iconográfica. Segundo a tradição popular, Verônica entregou a Jesus, em seu caminho em direção ao Gólgota, local de sua própria crucificação, um pano para que ele pudesse enxugar o suor e o sangue de seu rosto. Neste mesmo momento, o rosto de Jesus ficou retratado de forma milagrosa neste pano.
Em suma, pode-se afirmar que as obras religiosas de Widmar são fortemente caracterizadas pela temática do martírio e de Cristo. A pergunta referente ao motivo que possivelmente tenha levado o artista a retomar numerosas vezes este repertório de temas durante sua vida profissional permanece sem resposta.