29. März – 17. Mai 2012

Comunidade imaginária de indivíduos contemporâneos
Sobre a nova série de retratos pintados de Alex Flemming – Michael Nungesser

Os retratos pictóricos que Alex Flemming criou no decorrer dos últimos cinco anos resultam em uma nova série, ainda não concluída, da sua vasta obra. Com essas pinturas, o artista como que se re-inventou a si próprio, sem contudo desistir da sua expressão estética típica, básica, característica. Um desses modos de expressão é, como em todas as suas séries, o parentesco característico, temático e de imagens, relacionando a figura humana com os objetos que a acompanham. Vêem-se pessoas do ambiente onde Flemming vive. Apresentá-las em retrato é um gênero que se tornou muito importante na Europa, na história da arte renascentista; embora a fotografia tenha enfraquecido um pouco esse gênero, ela ao mesmo tempo deu um novo valor aos retratos. Costumando retratar a figura de frente, ou às vezes em meio perfil, como figura inteira ou meia figura, como detalhe de joelhos, de cintura ou peito, Flemming se enquadra numa extensa tradição, dando-lhe porém um enfoque completamente novo.

As pinturas de Flemming, em acrílico sobre tela, referem-se a fotos de pessoas tiradas por ele mesmo, sendo que várias pessoas em uma pintura podem proceder de diversas fotos individuais. Contudo, as fotos não servem de modelo, diretamente. Elas apenas sugerem, transmitem a pose, o gesto ou a mímica da respectiva pessoa, cuja expressão é então conservada ou transformada no processo criativo. Sendo fotos tiradas pelo próprio artista, há uma relação pessoal dele para com alguém oriundo do seu circulo de amizades mais próximo. Pois Flemming se descreve como sendo um „nômade genético“, ou seja, um homem comunicativo que retrata pessoas de „Berlim, a aldeia cosmopolita“, sua segunda pátria depois de São Paulo; gente da Alemanha, do Brasil, de Portugal, da Suíça, dos Países Baixos, ou de onde quer que seja.

Como os títulos dos quadros já sugerem, essa gente é em parte definida pela sua profissão; a profissão muitas vezes corresponde à natureza da pessoa ou ajuda a definí-la: galerista, professor universitário, advogado, oftalmologista, pedreiro, botânico, químico, carpinteiro, criador de papagaios, garçom ou sorveteiro.

Fora a atividade de galerista, nenhuma das outras atividades acima referidas tocam o campo das artes plásticas, embora alguns dos citados possam gostar de se rodear de arte, como por exemplo A Colecionadora de Arte. O artista conhece os outros profissionais pela vizinhança ou por ele usar os serviços dos mesmos. Alguns dos retratados se destacam no quadro por aquilo que estão fazendo, por exemplo A Tomadora de café ou Os Turistasdebaixo dos seus guarda-chuvas. O artista sente-se próximo de todas essas pessoas. Elas lhe são conhecidas – com apenas duas exceções: Os Paparazzi, que andam atrás de gente com profissão comparável à dele, que perseguem o consagrado artista criador de retratos anteriormente por ele fotografados; e os quatro policiais militares (sem título) de São Paulo. No Brasil, estes últimos pertencem a uma tropa de elite geralmente agressiva, a quem o artista somente ousou fotografar sob proteção e como protagonista de filmagens do programa da TV alemã Deutsche Welle.

Os retratos de Flemming se destacam por formatos variados, mas sempre de grandes dimensões, com a exceção, apenas, da senhora de idade elegante (sem titulo). Apesar das dimensões enormes dos quadros, as pessoas só costumam ocupar um espaço bastante pequeno na composição geral. O fundo existente em todas as pinturas, uma superfície gritante e irrequieta, de fortes pinceladas ondulantes em preto e prateado, forma uma base dominante, contra a qual as pessoas retratadas têm de se impor. Vestidas com roupa comum ou com traje profissional, muitas vezes são destacadas com atributos da sua atividade, por exemplo papagaio (criador), garrafa e copo (garçom), samambaia e cacto (botânico) ou vidros de ensaio (químico). O quadro O Sorveteiro ganha um destaque especial graças aos copinhos de sorvete grandes, vistos de cima, de muitas cores vivas em tons „pop-art“. São poucas as pessoas apresentadas com imagem forte, como O Advogado como retrato em dupla função e O Professor da Universidade de Utrecht. Ambos, de ombros largos, parecem se debruçar para fora da janela (isto é, do quadro).

Até aqui, duas características fundamentais que acompanham os retratos pintados ainda não foram mencionadas: a transparência dos corpos e o uso de estêncil para pintar os objetos e motivos. As partes do corpo que não estão vestidas, por exemplo rosto, braços e mãos, constituem-se apenas de contornos; no espaço interno entre os contornos transparece o inquieto pano-de-fundo. Também um copo de vinho, que está sendo conduzido à boca por uma moça elegante, pode apresentar-se desta forma. Os olhos, os quais mais possibilitam penetrar no interior de cada indivíduo, são indicados eventualmente por uma marcante pupila simbólica. Por vezes, óculos escuros cobrem os olhos. Isso faz com que os policiais militares, equipados de modo ameaçador, pareçam ainda mais temíveis. O rosto de O oculista como paciente é parcialmente coberto pelo aparelho médico que serve para diagnóstico de acuidade visual. Em Paparazzi o indivíduo some quase completamente atrás das máquinas fotográficas, parecendo apenas um apêndice das próprias câmeras. O efeito de anonimidade destes elementos grotesco-mecânicos parece uma reação de revanche do artista “vítima”.

O pano-de-fundo de todas as pinturas constitui-se de pinceladas simultâneas, feitas à mão. Elas formam uma estrutura abstrata sobre a qual são inscritas as pessoas e os objetos. O artista desenha e recorta com estilete o contorno das imagens de pessoas e acessórios: módulos sobre cartolina. Assim é aplicada uma grande variedade de formas; as maiores são para roupas e corpo, as menores servem para definir pregas, estrutura têxtil ou membros. A relação final de cores e formas depende da sequência em que os módulos foram aplicados. A coloração dos espaços entre os contornos admite eventualmente o uso do pincel ou do dedo, para efeito plástico, sem forçar volume nem espaço.

O pano-de-fundo criado livremente, sem ser figurativo, corresponde ao caos da vida, aos altos e baixos do destino oscilante, à grande embriaguez, à qual todas estas pessoas estão expostas. Ao mesmo tempo dá a entender a grande incógnita à qual o espaço da vida está submetido pela morte, transformando-a em uma esfera supra-sensível que pode ser apenas vislumbrada. As pessoas aqui expostas parecem vivas e ao mesmo tempo fantasmagóricas: vivas por causa das cores muitas vezes fortes, não naturalistas, mas com toques caprichosos nos tons das cores,  das roupas e dos objetos (por exemplo Os turistas ou Os paparazzi que explodem feito um verdadeiro fogo de artifício diante do absorvente pano-de-fundo); vivos, encenando, também através da constante transformação pictórica entre primeiro plano e cenário de fundo, entre figura e campo preenchido de cor, os quais se modificam conforme a luz ou o movimento do espectador; tudo ocorre por causa das diferentes aplicações das cores, por vezes opacas, pastosas, por vezes lisas ou metalicamente brilhantes. Mas ao mesmo tempo, essas pessoas encontram-se em um espaço isolado, onde parecem fantasmagóricas, flutuantes, como que no espaço existente entre a vida e a morte.

A transparência das partes do corpo, a qual elimina o sensório e os traços individuais do semblante, liberta os seres de sua existência terrestre, liberta-os, por assim dizer, de seu estado de ser único. Ao mesmo tempo, manifesta-se na pose, no olhar, na roupagem, na relação com os objetos usados, uma obstinação, algo de especial, revelando constantemente a identidade das personagens individuais tanto para o artista pintor como para o espectador da obra. Ao mesmo tempo as formas criadas por estêncil causam distanciamento, no qual se manifesta a visão do nosso atual mundo racional e mecanizado. Esboça-se uma existência absorvida por um misterioso e impenetrável pano de fundo – o chiar dos sistemas digitais?, energia cósmica?, o nada? – indicando a desintegração do indivíduo, como ele se dilui na massa humana e, por que não, na própria morte. As pinturas são trabalho de recordação, os retratados recebem do artista um estado pictórico transcendendo o seu “aqui” e “agora” , apresentando-os a nós como representantes de um tempo específico.

Alex Flemming é um artista versátil. Move-se entre diversos meios – entre a pintura, as artes gráficas, a fotografia e a instalação. Frequentemente executa pintura sobre materiais não convencionais. Aqui, permanece ligado à tradicional pintura em tela. Mas seus recursos artísticos são incomuns e contemporâneos. Seu mundo de imagens é figurativo, sem contudo fazer uso da mera reprodução. Flemming trabalha conceptualmente também nesta série de retratos; enfoca o corpo humano e o lado humano, apresentando-os no seu modo de ser medialmente transmitido, por assim como sua segunda natureza., Se os estêncis usados no final dos anos 80 tinham um caráter gráfico, agora eles caracterizam a figura humana como um todo.

Se destacarmos alguns retratos individuais (Pai, 1989; Autoretrato como Verônica, 1996), estes provém sobretudo de duas séries anteriores de imagens do ser humano: os retratos de pedestres anônimos, de variada descendência étnica, combinados com frases poéticas, pintados entre 1998 e 2000, que haviam sido encomendados para o local da construção da estação do metrô Sumaré em São Paulo. E pinturas fazendo parte de um grupo de trabalhos denominado „Série Altura“, iniciado em 1990, no qual gente importante fora levada ao atelier e ali retratada à maneira da nova série, isto é, aparecendo diante de um pano de fundo abstrato; esses personagens são traduzidos em metáforas por meio de medidas determinadas em varas representando a sua estatura. Aqui nos confrontamos com as pessoas por assim dizer à nossa altura, pessoas do nosso meio, vistas e reunidas pelo artista Alex Flemming. Resultam em uma comunidade imaginária  de gente contemporânea, cujas figuras, fixadas em imagens impressionantes, oscilam entre o invólucro e a essência, entre sua volatilidade e sua duração.

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Vernissage, May 12, 2017