A alma das imagens fotográficas – Boris Kossoy
Esta exposição é, para mim, um reencontro com as minhas imagens, portanto, comigo mesmo. O conjunto de fotos aqui reunido foi um desafio único na minha carreira fotográfica, pois optei em ser o curador de mim mesmo, tarefa pouco cômoda e arriscada, mas uma experiência interessante, uma compreensão madura das linhas de força que permearam meu caminho ao longo do tempo. Lembranças prazenteiras de sentimentos e saberes a se mesclarem com os objetos e contextos fotografados, nos diferentes lugares e épocas.
Uma viagem pelo percurso de nossas imagens se confunde com o nosso próprio percurso de vida. Mas, nesta exposição, uma outra lógica se impunha: a de deixar de lado o partido cronológico, muito confortável, aliás, mas que corre o risco de se aproximar do “inventário” ou da “retrospectiva”; desde logo descartei tais opções. O que, de fato, importava, era ressaltar a essência do meu trabalho de meio século, porém apresentado como uma história, com um roteiro pensado, onde as imagens de ontem poderiam conviver perfeitamente com as de hoje. Sem conflitos de forma, nem embates de conteúdo.
De outra parte, a preocupação estética está na raiz da construção das minhas imagens, surge na apreciação do objeto, no modo como o percebo e represento, está no DNA desta elaboração, é a sua expressão. As correlações plásticas e de conteúdo dialogam entre si através do tempo e, com o tempo, estabelecem os conjuntos e subconjuntos: a edição ganha sentido, nasce a narrativa.
Quando fotografamos criamos/construímos realidades. Sempre observei como as realidades e as ficções se fundem numa única mensagem, uma convivência que não reside apenas na encenação teatral (minha série Viagem pelo Fantástico, dos anos 70, por exemplo), mas em admitir o papel da ficção como fator constituinte da própria produção da representação fotográfica: uma trama técnica, estética, cultural e ideológica. Em outras séries, nos anos que se seguiram, pude constatar isso, e seguir lapidando a ideia de como a atmosfera imposta à cena e mesmo ao dado, aparentemente inocente, podem causar estranhamento, algo que fica no ar, impressões que não se definem exatamente.
Enquanto exercício teórico fazemos o contrário: tentamos desarticular a construção das imagens. A interpretação tem aí seu fundamento e instrumento. Temos aqui um ponto de partida para a desmontagem das imagens, trilha para o seu conhecimento interior: o desvendar de suas múltiplas camadas de significação, internas, ocultas.
A imagem fotográfica, uma vez criada, torna-se uma realidade em si mesma, uma segunda realidade. É o mundo da representação, um mundo paralelo, ambíguo, constituído de realidades construídas e ficções documentais, no qual, as imagens seguem existindo, guardam semelhança com o objeto, porém tem vida própria, se reinventam, perenemente.
A tentação, nesta altura, é a de me estender sobre minha obra, porém seria inútil repetir aqui o que já escrevi especificamente em outros lugares, especialmente em Boris Kossoy, fotógrafo (Cosac & Naify, São Paulo, 2008). Apesar disso, alguns aspectos sobre o meu processo de criação talvez devam ser ressaltados.
Os comics, a literatura de mistério, o teatro e o cinema, as artes visuais e a arquitetura, as ilustrações fantasiosas da história e o realismo mágico, me influenciaram desde jovem e me direcionaram para o caminho que deveria seguir como fotógrafo. De fato, magia, mistério e memória sempre estiveram na essência de minha obra. Procuro e encontro grande parte dos meus temas no contexto da chamada realidade concreta, imediata. Nela me intrigam certos cenários e fatos corriqueiros que passam normalmente despercebidos para outras pessoas: não posso deixar de registrar determinadas ocorrências que noto nas casas, nas ruas, nos caminhos, nas janelas para onde dirijo minha câmera, lembrando Hitchcock, tentando desvendar o drama que pode estar acontecendo naquele lar, nas vitrines do comércio, na sedução de um gesto, na inquietação de um olhar.
É claro que alguns personagens tem marcado presença mais destacada em minha obra e tal se vê na atitude zombeteira do Sr. Américo, nos manequins que nos observam tristemente, aqui e ali, nas criaturas inanimadas de pedra, papel e louça que, na imagem fotográfica, se alçam à categoria de humanos, ou vice-versa, posto que, nesta condição, são igualmente objetos estáticos congelados pelo registro. A fantasia também existe se por ela nos deixarmos envolver na paisagem silenciosa de uma tarde de um dia sem fim em Marbach ou se não tememos adentrar num bosque, talvez encantado, onde o ar é verde, num mirante de serra, nas proximidades de São Paulo.
Pelo obturador da camera registro o mundo exterior guiado pela intuição, pela emoção, pelas imagens do meu imaginário: o meu caleidoscópio mental. Observo o dado e minha imaginação o ultrapassa, indica a direção, tudo contribui, se complementa, cenas e fatos se apresentam para mim e eu os traduzo para a dimensão da imagem fotográfica. Criação e reflexão.
Não raro me deparo com situações que me parecem conhecidas, tenho uma vaga lembrança de um tempo anterior, embaçado, um outro tempo. Este tem sido meu percurso: registros de viagens por geografias desconhecidas, um meio também de nos descobrirmos a nós mesmos e encarar nossos fantasmas.
Sigo tentando em minhas fotografias, enfim, ir além do objeto explícito, além do aparente, da aparência, matéria prima da fotografia, sua realidade exterior; busco nas imagens pistas para a recuperação histórica de sua gênese, assim como dos fatos que representam. Me refiro, pois, ao que a câmera não registra, o oculto da representação, sua realidade interior.
Passados 50 anos de meus inícios na fotografia, ainda é esta dicotomia do aparente/oculto o desafio permanente que me motiva e emociona. O registro, sim, porém além do registro: a representação. Toda fotografia tem atrás de si uma história e toda história é plena de representações. Procuro, em minhas imagens, captar a alma dessas representações. Aí reside o conceito.
Por fim, gostaria de agradecer ao amigo Jorge Coli pela sensível apresentação que fez do meu trabalho, a Carlos Fadon Vicente, amigo de longa data e sábio conselheiro e, especialmente, a Malu, minha companheira, pelo carinho e pela força, em todos os momentos desta travessia.